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Contrastes Jurídicos entre a Legislação Aeronáutica e a Consumerista: A Decisão do STF e o Aprimoramento da Racionalidade Regulatória na Responsabilidade Aérea

A recente decisão monocrática proferida pelo Ministro Dias Toffoli no ARE 1.560.244 (Tema 1.417 da repercussão geral) suspendendo todos os processos que tratam sobre a responsabilidade civil por atrasos, cancelamentos ou alterações de voos decorrentes de caso fortuito ou força maior até o julgamento definitivo do tema nº 1.417 de repercussão geral, estabeleceu um marco para a segurança jurídica no setor aéreo.


Essa medida, crucial diante da fragmentação jurisprudencial que vem criando profunda insegurança normativa, tem como controvérsia central a definição do regime jurídico aplicável nestes casos: ou as regras previstas no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/1986) ou o Código de Defesa do Consumidor (lei nº 8.078/1990). A divergência de entendimentos nos Tribunais gerou tratamento desigual e um ambiente de profunda insegurança jurídica em casos equivalentes e uma sobrecarga massiva em todo o Poder Judiciário.

A escolha do regime aplicável possui alcance que extrapola a esfera subjetiva das partes, interferindo na organização de toda a malha aérea nacional, repercutindo diretamente sobre o equilíbrio econômico das operações e afetando a racionalidade regulatória de um setor altamente sensível a fatores técnicos, custos operacionais e padrões internacionais de conformidade. A suspensão ordenada pelo Supremo Tribunal Federal, assim, não apenas interrompe o avanço da assimetria decisória, mas cria as condições institucionais necessárias para que a Corte estabeleça, com profundidade constitucional, o marco jurídico adequado para o tratamento da responsabilidade aérea no país.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria para responder à seguinte questão central: à luz do Art. 178 da Constituição Federal, a responsabilidade do transportador aéreo por danos decorrentes de atraso, alteração ou cancelamento de voo motivados por caso fortuito ou força maior deve ser regida por qual norma?

A controvérsia não se limita a um debate meramente hermenêutico entre lei geral e lei especial, mas envolve a definição do regime jurídico adequado para um setor altamente técnico e essencial à integração territorial e econômica. O Art. 178 da Constituição Federal é o ponto de partida desta análise, ao dispor que a ordenação do transporte aéreo será disciplinada por lei específica.

Essa diretriz constitucional sinaliza um reconhecimento fundamental: a aviação civil possui uma singularidade técnica que demanda um tratamento jurídico uniforme e especializado. Quando estão em jogo hipóteses de caso fortuito, força maior, restrições operacionais, ou medidas de segurança determinadas pelas autoridades aeronáuticas, a aplicação da norma setorial (Código Brasileiro de Aeronáutica) é o caminho que melhor respeita a lógica sistêmica e a racionalidade regulatória.

A aviação opera sob a égide de complexos padrões de segurança e logística, regidos por agências internacionais e nacionais (como a ANAC). A análise da responsabilidade do transportador aéreo, portanto, não pode ser dissociada nem das peculiaridades da atividade, nem da regulação internacional à qual o Brasil se submete.

A aplicação automática de um regime de responsabilidade alheio às especificidades técnicas do Código Brasileiro de Aeronáutica e alterações trazidas pela Lei nº 14.034/2020, implementadas durante a pandemia, tendem a comprometer a coerência e a eficiência do sistema jurídico. Esta norma regulatória busca equilibrar a proteção do passageiro com a necessidade de previsibilidade para o operador, uma vez que a atividade aérea é intrinsecamente dependente de variáveis externas incontroláveis e que fogem de qualquer previsibilidade da empresa, como clima, infraestrutura aeroportuária de terceiros, determinações de controle de tráfego aéreo).

Segundo dados apresentados pelas entidades do setor que atuam como amicus curiae revelam um quadro estrutural particularmente preocupante: o Brasil consolidou-se, nos últimos anos, como um dos países com maior volume de litígios envolvendo o transporte aéreo de passageiros.

A determinação do Ministro Dias Toffoli de suspender os processos tornou-se indispensável diante do ambiente de profunda assimetria jurisprudencial que se formou nos tribunais brasileiros. A coexistência de decisões que ora aplicavam o CDC, ora o Código Brasileiro de Aeronáutica, somada a julgados que desconsideravam dispositivos da Lei 14.034/2020, gerou um quadro de manifesta instabilidade normativa. Logo, a ausência de um entendimento consolidado, além de afrontar o princípio da isonomia, alimentou a multiplicação de demandas judiciais. A intervenção como amicus curiae trazida pela Confederação Nacional do Transporte, por exemplo, demonstrou de forma concreta que a aviação civil enfrenta um volume expressivo de ações judiciais repetitivas, muitas vezes desvinculadas das particularidades técnicas do setor.

Essa judicialização massificada, que se aproxima de um padrão de litigância predatória, tem efeito direto sobre a economia do setor, causando aumento de custos operacionais, insegurança para investidores e grande sobrecarga judicial.

O volume de litígios eleva as despesas com custas, honorários e indenizações, recursos que seriam melhor aplicados na expansão de rotas, renovação de frota e melhoria da qualidade do serviço. O processamento simultâneo de milhares de litígios semelhantes, mas julgados sob premissas distintas, amplia o retrabalho, prolonga a duração dos processos e viola a garantia constitucional da razoável duração do processo (Art. 5º, LXXVIII, da CF). Portanto, a insegurança jurídica causada pela imprevisibilidade da jurisprudência desencoraja investimentos, comprometendo a expansão da malha aérea e desestimulando a entrada de novos operadores no mercado e recursos que naturalmente deveriam ser destinados à ampliação de rotas, à renovação de frota, à inovação tecnológica e à melhoria da qualidade do serviço acabam sendo desviados para o custeio de uma estrutura contenciosa crescente, onerosa e permanente.

Nesse cenário, a aplicação automática da responsabilidade objetiva previstas na lei consumerista, dissociada da observância das normas técnicas e operacionais estabelecidas pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, acaba por instaurar, na prática, um regime de risco integral. Este é regime de responsabilização que não admite excludentes, responsabilizando o agente mesmo em casos de caso fortuito ou força maior. A imposição deste modelo de responsabilização à aviação, ao desconsiderar hipóteses de eventos externos e limitações técnicas, gera distorções que comprometem a racionalidade regulatória e, em perspectiva de médio e longo prazo, podem afetar a própria sustentabilidade da aviação comercial no país.

No Código Brasileiro de Aeronáutica o regime é especializado. As excludentes são delimitadas, como condições meteorológicas adversas, falhas na infraestrutura aeroportuária ou determinações da autoridade aeronáutica. Estas excludentes são essenciais, pois o transportador aéreo não controla o espaço aéreo nem as condições operacionais dos aeroportos.

Assim, ao responsabilizar a empresa por eventos que não pode controlar (como o fechamento de um aeroporto pela ANAC), o sistema jurídico acaba penalizando o cumprimento das normas de segurança, minando a lógica de que o Código Brasileiro de Aeronáutica e as autoridades aeronáuticas devem ter a primazia regulatória em questões técnicas.

Portanto, os custos elevados da litigância e o risco de condenação por eventos incontroláveis são inevitavelmente absorvidos pela estrutura tarifária repercutem no valor final das passagens e, paradoxalmente, acabam onerando o próprio consumidor que se busca proteger.

A decisão do Supremo Tribunal Federal cumpre, acima de tudo, a função de estabelecer um marco de estabilidade normativa ao suspender nacionalmente os processos que discutem a questão controvertida no Tema nº 1.417. O propósito imediato da medida é permitir que o Tribunal identifique, de forma definitiva, qual diploma legal deve reger a matéria — se o Código Brasileiro de Aeronáutica ou o Código de Defesa do Consumidor — evitando que o país continue convivendo com entendimentos contraditórios, uniformizando a jurisprudência marcada por decisões divergentes.

Paralelamente, a suspensão opera como ferramenta eficaz de contenção da litigância predatória que se instalou no setor aéreo, alimentada justamente pela ausência de um critério jurídico consolidado, interrompendo milhares de ações massificadas contra companhias aéreas fora da lógica própria da aviação civil. Desta forma, impedirá a produção de custos desnecessários para a sociedade, contribuindo para fortalecer a segurança jurídica indispensável ao funcionamento do setor e reforçando a coerência sistêmica que a aviação civil exige, recolocando a proteção aos consumidores e empresas dentro dos limites técnicos e constitucionais adequados, garantindo que o serviço aéreo continue sendo prestado de forma segura, eficiente e sustentável.

A suspensão nacional dos processos determinada pelo Ministro Dias Toffoli constitui medida relevante para possibilitar uma análise mais coerente do sistema jurídico aplicado ao transporte aéreo, preservando a racionalidade regulatória de um setor altamente técnico.

O futuro julgamento de mérito do Tema 1.417 terá repercussão decisiva para a aviação civil brasileira. A definição do regime jurídico aplicável à responsabilidade das companhias aéreas não apenas estabelecerá um marco regulatório de referência para o setor, mas também delimitará, em bases constitucionais, o papel das normas técnicas na solução de conflitos envolvendo transporte aéreo. Trata-se de oportunidade ímpar para harmonizar o ordenamento interno com a realidade técnico-econômica da aviação moderna, promovendo um ambiente regulatório mais estável, eficiente e compatível com os desafios da mobilidade aérea no século XXI.

Para contextualizar o debate e aprofundar a análise jurídica, disponibilizamos abaixo os recursos extraordinários que fundamentam a controvérsia atualmente submetida ao Supremo Tribunal Federal. Confira os exemplos:

Recurso Extraordinário – ARE 1560224
Recurso Extraordiário – RE 1407443
Recurso Extraordiário – RE 636331
Recurso Extraordiário – RE 1461431

Controladoria jurídica e automação de processos: caminhos para redução de custos e aumento da eficiência

A transformação digital tem provocado mudanças significativas no setor jurídico, exigindo de escritórios e departamentos jurídicos a adoção de novas práticas de gestão. 


Com o avanço da tecnologia e o aumento da complexidade das demandas judiciais, a organização sistematizada dos processos jurídicos passou a representar um importante diferencial competitivo no mercado, surgindo a controladoria jurídica, que impulsionada pelas ferramentas de automação de processos, através de aspectos como padronização, controle de prazos e otimização de fluxos, promove a modernização da gestão jurídica. 

Considerando esse panorama, de acordo com Luiz Durval, Controller Jurídico no Küster Machado Advogados, a implementação da controladoria jurídica tornou-se necessária para garantir a gestão eficiente das equipes jurídicas, trazendo diversas vantagens operacionais evidentes, como redução de custos, melhoria da qualidade na prestação dos serviços, aumento real da produtividade dos profissionais do direito e controle efetivo sobre todas as demandas internas. 

Com uma estrutura de um operacional bem organizado, os escritórios experimentam melhora significativa na produtividade, segurança e qualidade dos serviços jurídicos. A centralização e controle das operações proporcionam possibilidade de expansão e segurança, que são decisivas para a competitividade dos escritórios e departamentos jurídicos, sobretudo diante do aumento do volume e complexidade dos processos. 

Contudo, a implementação de uma controladoria jurídica efetiva e de qualidade, enfrenta diversos obstáculos como altos investimentos iniciais, dificuldades na integração de sistemas existentes, adaptação cultural e resistência a mudanças organizacionais. 

Outrossim, um fator relevante que devemos considerar é a necessidade de cuidados com segurança e privacidade de dados, especialmente considerando a LGPD, visto o grande volume de dados que precisam ser protegidos, sendo essencial não só a prevenção de vazamentos, mas também a proteção contra ameaças cibernéticas. 

Apesar dos desafios mencionados, a modernização da controladoria jurídica mostra-se fundamental para garantir a competitividade e a sustentabilidade das organizações jurídicas. 

Estudos recentes destacam o impacto da tecnologia e da automação na gestão jurídica e na redução de custos operacionais. Segundo o relatório “GenAI e Future Corporate Legal Work: Quão prontas estão as equipes internas?” (ACC e Everlaw, 2024), a adoção de inteligência artificial e automação tem transformado a estrutura e a gestão dos departamentos jurídicos. O estudo indica que 49% dos entrevistados esperam redução de custos, 25% já obtiveram economias concretas e 58% preveem menor dependência de serviços externos, aumentando a eficiência e o controle interno. 

Ressalta-se, que a automação de processos jurídicos, especialmente por meio de RPA’s (Robotic Process Automation) e programas de inteligências artificiais, se mostram imprescindíveis na organização e realização de tarefas consideradas repetitivas e rotineiras, como alimentação de sistemas, controle de prazos, emissão de relatórios, triagem de publicações, cadastros, dentre outras. A inovação e o avanço dessas tecnologias, bem como o surgimento de novas startup´s, com programas cada vez mais fluidos, interativos e com a possibilidade de personalizações, além de reduzir custos e falhas administrativas, oferecem soluções com serviços focados para os clientes. 

Diante disso, é possível afirmarmos que o impacto gerado por toda evolução e modernização tecnológica, concomitante a utilização de automações e inteligências artificiais, vêm redefinindo o cenário no âmbito jurídico, permitindo que os profissionais se concentrem em atividades de maior valor, elevando sua produtividade, reduzindo custos, atuando com mais assertividade e melhora nos resultados, garantindo eficiência e segurança em meio ao aumento da complexidade das demandas. 

Referências: 

ACC; EVERLAW. GenAI e Future Corporate Legal Work: Quão prontas estão as equipes internas? 2024. 

DURVAL, Luiz. Controladoria Jurídica no Küster Machado Advogados. Entrevista concedida em 2024.