Como a LGPD Transformou a Rotina das Áreas de Compliance e Governança Corporativa 

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Por Adriana Esper

A promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) representou um ponto de inflexão para as estruturas de compliance e governança corporativa no Brasil. Mais do que uma norma de adequação tecnológica, a LGPD introduziu um novo paradigma regulatório: a proteção de dados como expressão concreta de responsabilidade, ética empresarial e respeito à dignidade da pessoa humana. Seguem abaixo alguns pontos que entendemos devam ser destacados nessa transformação da nossa rotina digital: 

1. A proteção de dados como valor organizacional 

A LGPD ampliou o escopo tradicional da área de compliance e da governança das empresas, que passaram a incorporar a privacidade e a gestão de dados entre os temas centrais de integridade. Dados pessoais deixaram de ser apenas ativos operacionais para se tornarem objetos de dever jurídico — e, portanto, sujeitos a princípios como finalidade, necessidade, transparência e prestação de contas. Isso exigiu uma transformação na mentalidade das empresas: proteger dados passou a ser proteger pessoas, reputações e relações de confiança. 

2. Fortalecimento da cultura de responsabilidade 

A LGPD fortaleceu a governança corporativa ao introduzir o conceito de accountability — ou seja, a exigência de que as empresas não apenas cumpram as obrigações legais, mas demonstrem, com evidências, a adoção de medidas técnicas e organizacionais para proteger os dados pessoais. Isso impulsionou a formalização de políticas, a criação de comitês de privacidade, a realização de auditorias e treinamentos, além da valorização da figura do encarregado de proteção de dados (DPO) como elo entre titulares, empresas e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). 

3. Nova dimensão na gestão de riscos e reputação 

O vazamento de informações ou o uso indevido de dados pessoais deixaram de ser falhas operacionais para se tornarem eventos críticos com impactos jurídicos, regulatórios e reputacionais. Em resposta, muitos conselhos de administração passaram a incluir a proteção de dados em suas pautas estratégicas. 

4. Conexão com ESG e valor de mercado 

A proteção de dados se conectou com o avanço da agenda ESG. O respeito à privacidade e aos direitos dos titulares está hoje associado a boas práticas de governança e à responsabilidade social. Investidores e stakeholders consideram o nível de maturidade em proteção de dados como um indicador de comprometimento ético e capacidade de gestão de riscos. Assim, a conformidade com a LGPD deixou de ser um custo e passou a ser percebida como um ativo competitivo. 

Em síntese, a LGPD provocou uma profunda transformação estrutural nas áreas de compliance e governança. Empresas que internalizaram essa mudança não apenas reduziram riscos, mas também fortaleceram sua credibilidade institucional em um cenário em que confiança, transparência e responsabilidade são valores cada vez mais essenciais à sustentabilidade dos negócios. 

Os Principais Desafios da Aplicação Prática da LGPD nas Empresas Brasileiras 

Desde sua entrada em vigor (setembro de 2020), a LGPD representou um marco de transformação na forma como empresas tratam dados pessoais. No entanto, a aplicação prática da LGPD no Brasil ainda impõe uma série de desafios que vão muito além da simples elaboração de documentos ou políticas internas. Trata-se de uma mudança estrutural que exige maturidade institucional, governança sólida e compromisso contínuo. Nesse sentido, destacamos: 

1. Cultura organizacional e visão estratégica limitada 

Um dos principais entraves é o tratamento da LGPD como um projeto isolado, técnico ou jurídico, quando na verdade ela demanda uma abordagem transversal, que envolva todas as áreas da empresa. Muitas organizações ainda enxergam a conformidade digital como uma obrigação burocrática, sem compreender o valor estratégico da proteção de dados para a reputação, inovação e competitividade. 

2. Falta de recursos e priorização 

Especialmente entre médias e pequenas empresas, o processo de adequação esbarra na limitação de orçamento, ausência de pessoal qualificado e dificuldade de priorização frente a outras demandas regulatórias e operacionais. A falta de investimento adequado compromete a implementação de controles efetivos, auditorias internas, treinamentos e ferramentas tecnológicas. 

3. Dificuldade de interpretação e aplicação dos princípios legais 

A LGPD adota conceitos amplos — como finalidade, necessidade, adequação e legítimo interesse — que exigem análise contextual e ponderação jurídica. Muitas empresas têm dificuldade em aplicar essas diretrizes de forma prática, principalmente quando precisam equilibrar os direitos dos titulares com os seus interesses comerciais. 

4. Desafios na relação com terceiros e cadeia de fornecedores 

Gerir riscos na cadeia de fornecimento, auditar contratos, assegurar cláusulas de proteção de dados e supervisionar o tratamento feito por terceiros requer uma estrutura de governança robusta — ainda incipiente em muitas empresas. 

5. Governança de dados e novas tecnologias 

Com o avanço da inteligência artificial, da análise preditiva e da automação de decisões, surge a necessidade de implementar controles ainda mais sofisticados. As empresas precisam lidar com temas como explicabilidade de algoritmos, avaliação de impacto (DPIA) e gestão de dados sensíveis — exigências que demandam conhecimento técnico-jurídico especializado. 

A implementação da LGPD é desafiadora, mas inevitável. Aquelas empresas que assumirem a proteção de dados como um compromisso institucional, e não como uma obrigação pontual, estarão mais preparadas para enfrentar riscos regulatórios, fortalecer sua reputação e construir relações sustentáveis com clientes, colaboradores e parceiros. Em tempos de economia digital e confiança como valor central, cumprir a LGPD é uma questão de integridade e visão de futuro. 

Houve evolução na cultura de proteção de dados das empresas ou o cumprimento da LGPD ainda é uma obrigação burocrática? 

Desde a entrada em vigor da LGPD observamos um avanço significativo na conscientização das empresas sobre a importância da privacidade e da governança de dados. A LGPD estimulou a criação de estruturas internas dedicadas à conformidade, fomentou o diálogo entre áreas jurídicas, tecnológicas e de negócios e reforçou a valorização da confiança como ativo estratégico. 

Contudo, apesar desses avanços, o cenário ainda é desigual. Em muitas organizações — especialmente de médio e pequeno porte — a adequação à LGPD permanece restrita a um esforço inicial, muitas vezes centrado em documentos formais, sem integração real à cultura organizacional. Nesses casos, o cumprimento da lei ainda é tratado como uma obrigação burocrática, associada ao risco regulatório, e não como uma prática contínua de ética empresarial e responsabilidade digital. 

Esse descompasso evidencia que a verdadeira maturidade em proteção de dados vai além da formalização de políticas. Requer engajamento da liderança, investimento em educação contínua, mecanismos de governança vivos e disposição para revisar processos e decisões à luz dos direitos dos titulares. 

Ou seja, a evolução é real, mas parcial. As empresas que avançaram estão colhendo os frutos — seja na mitigação de riscos, na construção de reputação ou no fortalecimento da governança. Já aquelas que tratam a LGPD como mero “checklist” correm o risco de comprometer sua credibilidade e competitividade em um ambiente cada vez mais sensível à privacidade e à integridade dos dados pessoais. 

Tendências para os Próximos Anos na Proteção de Dados 

A proteção de dados está deixando de ser apenas uma exigência legal para se tornar um verdadeiro diferencial estratégico. A LGPD consolidou-se como marco essencial de governança, mas seu impacto será ainda mais profundo nos próximos anos. O cenário aponta para uma evolução regulatória e cultural que exigirá das empresas maturidade, adaptabilidade e responsabilidade contínua. A proteção de dados se tornou uma prática corporativa viva. 

Uma das tendências mais evidentes é o fortalecimento da ANPD. Com a consolidação de sua estrutura, espera-se uma atuação mais intensa em processos de fiscalização, regulamentação de temas sensíveis (como bases legais, direito dos titulares, riscos de alta escala) e imposição de sanções. A previsibilidade regulatória dependerá diretamente da capacidade da ANPD de atuar com autonomia e clareza. 

Outro movimento importante é a setorialização da regulação, com normas específicas para áreas como saúde, financeiro, educação e inteligência artificial. Nesse contexto, a interoperabilidade normativa será essencial: as empresas precisarão alinhar a LGPD com outros marcos legais, como o Marco Civil da Internet, a legislação consumerista, as regras do Sistema Financeiro Nacional e os futuros regulamentos sobre IA. Essa complexidade exigirá estruturas de governança mais integradas e atentas aos riscos cruzados. 

No plano internacional, a transferência de dados entre países continuará em foco. O Brasil buscará o reconhecimento de nível adequado de proteção pela União Europeia e maior inserção em acordos multilaterais. Empresas que operam globalmente precisarão adaptar suas práticas aos requisitos de diferentes jurisdições — tornando o compliance internacional uma competência indispensável. 

Do ponto de vista estratégico, a privacidade será cada vez mais percebida como valor de marca. Organizações que demonstrem respeito à privacidade de forma transparente, prática e responsável estarão mais preparadas para conquistar a confiança de consumidores, investidores e parceiros. A proteção de dados passará a ser considerada um elemento de inovação ética. 

Por fim, destaca-se a ascensão da governança tecnológica: com o avanço da inteligência artificial e da automação, será essencial estabelecer critérios claros para tratamento de dados, responsabilização de algoritmos, prevenção a vieses e explicabilidade. A proteção de dados será indissociável da governança digital, da segurança da informação e da ética nos negócios. 

Em resumo, a proteção de dados está se transformando em um pilar da sustentabilidade organizacional. As empresas que tratarem a LGPD não apenas como um requisito normativo, mas como um componente estratégico e cultural, estarão melhor posicionadas para navegar os desafios do futuro digital. 

Por onde começar? Recomendações para Empresas que Ainda Estão Atrasadas na Implementação da LGPD 

Mais de quatro anos após a entrada em vigor da LGPD, ainda há muitas empresas que não iniciaram ou não concluíram o processo de adequação. Algumas tratam a conformidade como um tema técnico ou acessório, outras sentem-se sobrecarregadas com a complexidade do tema ou inseguras diante da ausência de diretrizes específicas para seu setor. O fato é que a LGPD já está plenamente vigente, e sua inobservância pode gerar não apenas sanções administrativas, mas também riscos reputacionais, contratuais e judiciais. 

Para essas organizações, o momento é de ação estratégica e pragmática. A seguir, destacamos recomendações essenciais para iniciar ou retomar o processo de conformidade com foco em prioridades e resultados tangíveis: 

1. Engajar a alta liderança 

A adequação à LGPD não deve ser vista como um projeto jurídico ou de TI, mas como uma pauta transversal de governança. O comprometimento da alta gestão é decisivo para a efetividade das medidas, alocação de recursos e definição de prioridades. A liderança precisa entender que proteger dados é proteger valor, reputação e confiança. 

2. Mapear dados e fluxos com realismo 

Um bom diagnóstico é o primeiro passo. Identifique quais dados pessoais a empresa coleta, com quem compartilha, por quanto tempo armazena e com qual finalidade. O mapeamento deve priorizar atividades críticas ao negócio e dados sensíveis, permitindo a gestão proporcional de riscos. 

3. Priorizar riscos e vulnerabilidades 

A empresa não precisa resolver tudo de uma vez. O ideal é adotar uma abordagem baseada em riscos: dados sensíveis, dados de crianças, decisões automatizadas, transferências internacionais e terceiros com acesso a dados são exemplos de áreas que merecem atenção imediata. 

4. Formalizar políticas e procedimentos 

Mesmo que ainda em processo de amadurecimento, é importante adotar políticas mínimas de privacidade, termos de uso, cláusulas contratuais e controles internos. O ideal é que esses instrumentos sejam revistos periodicamente à medida que a governança evolui. 

5. Designar um encarregado (DPO) 

A nomeação do DPO — mesmo que seja um profissional interno com múltiplas funções — sinaliza o compromisso da empresa com a transparência e com os titulares. O DPO atua como ponto de contato com a ANPD e com os usuários. 

6. Capacitar equipes e fornecedores 

A proteção de dados não se faz apenas com documentos. Treinamentos internos periódicos, orientações práticas e cláusulas contratuais de privacidade com parceiros são fundamentais para garantir aderência operacional. 

7. Implementar um canal de atendimento ao titular 

Ter um canal acessível e eficiente para atender pedidos de acesso, correção, exclusão ou portabilidade de dados é uma exigência legal e uma demonstração de respeito aos direitos  

A jornada de conformidade é contínua. O mais importante é começar com foco e seriedade, avançando passo a passo de forma consistente. A LGPD não é um entrave à atividade empresarial — ao contrário, ela representa uma oportunidade de aprimorar processos, fortalecer relações e posicionar a empresa como agente responsável na nova economia digital. 

A conformidade com a LGPD vai além da proteção jurídica — ela é um ativo de reputação, um diferencial competitivo e uma expressão concreta de respeito à dignidade das pessoas. No mundo atual, proteger dados é proteger valores. Normas como a LGPD humanizam o digital.