Avanços setoriais para o aumento da segurança na comercialização de energia

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Por David Waltenberg, Eduardo Evangelista e Pedro Schönberger*

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) publicou recentemente a Resolução Normativa nº 1.014/2022, que estabelece requisitos e procedimentos complementares relativos à obtenção e à manutenção de autorização para a comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN). Trata-se de substancial alteração setorial, que se insere em um contexto mais amplo de discussões sobre aumento na segurança do mercado livre de energia, que ganhou fôlego desde 2019 e cujos próximos passos já se encontram em consulta pública na Aneel.

No atual contexto de abertura de mercado de energia elétrica, a segurança das operações no ambiente de contratação livre adquire maior importância. Com efeito, o limite para ingresso no mercado livre tem sido reduzido ano a ano por força da Portaria MME nº 465/2019 – atualmente, consumidores com carga superior a 1 MW já podem optar pela contratação livre. Nas discussões do Projeto de Lei nº 414/2021, voltado à chamada “modernização do setor elétrico”, fala-se em abertura do mercado livre a quaisquer consumidores. Em paralelo a estes movimentos dos reguladores, o número de consumidores livres vem crescendo de forma acentuada – segundo a CCEE, de 2011 a 2021 o número de agentes na Câmara saltou de 1,5 mil para mais de 11 mil.

Acompanhando este quadro de aumento da relevância do ambiente de contratação livre, alguns eventos ocorridos em 2019 trouxeram à pauta os riscos sistêmicos associados, como foi o caso de um episódio de exposição de uma comercializadora – que, em determinado momento, não tinha lastro para honrar a energia que vendera – o que impactou também suas diversas contrapartes, fazendo com que alguns agentes entrassem em recuperação judicial. Esse cenário, aliado à abertura do mercado já em marcha, trouxe novamente ao debate o tema dos mecanismos de acesso, monitoramento e garantias de liquidação do mercado livre de energia.

Mas, apesar da referência à crise mais aguda, convém lembrar que o aperfeiçoamento dos mecanismos regulatórios visando a segurança do mercado é um trabalho contínuo, podendo-se citar, ainda antes de 2019, o exemplo da criação das regras de efetivação de contratos em 2014 ou da alteração dos requisitos para autorização de comercializadoras em 2015. De toda forma, após 2019, verificou-se uma movimentação mais intensa da Aneel e da CCEE para a elaboração e aprovação de propostas de alteração das regras de comercialização com essa finalidade.

A recém editada Resolução Normativa nº 1.014/2022 insere-se neste contexto, devendo assim ser interpretada e aplicada. Suas disposições introduzem normas para a autorização de funcionamento de novas comercializadoras e para o desligamento de agentes da CCEE.

Alguns temas analisados, decididos e sedimentados ao longo do tempo por meio de decisões reiteradas da Aneel passaram a ser previstos expressamente na norma. Assim, por exemplo, a vedação à abertura de novas comercializadoras por grupo econômico do qual faça parte companhia em processo de monitoramento por possível irregularidade, ou desligamento da CCEE.

Mas a alteração mais sensível consistiu na classificação das comercializadoras em dois grupos, um com e outro sem limites de operação. As comercializadoras de Tipo 1 poderão operar sem limites, ao passo que as comercializadoras de Tipo 2 só poderão registrar até 30 megawatts médios (MWm) mensais em vendas. Destaque-se que o limite de 30 MWm foi definido pela Aneel por representar um referencial que abarcaria a maior parte das pequenas comercializadoras atualmente em atividade.

O acesso a cada um dos grupos depende de requisitos financeiros, a saber: uma comercializadora Tipo 2 (com limite) precisa comprovar ao menos R$ 2 milhões de capital social para receber e manter sua autorização, enquanto uma comercializadora Tipo 1 (sem limite) precisa de R$ 10 milhões em patrimônio líquido. Ressalte-se que o patrimônio líquido, à diferença do capital social, leva em conta ativos, mas também passivos da companhia. Assim, além do valor maior, as comercializadoras de Tipo 1 devem atender a um outro tipo de indicador financeiro que procura captar de forma mais precisa sua real situação patrimonial.

O estabelecimento de critérios mais rígidos para a obtenção de autorização para
comercialização de energia elétrica se refletiu também nas regras para manutenção da aptidão para o desempenho da atividade. Com efeito, passou a ser anual a necessidade de demonstração pelas comercializadoras das credenciais mencionadas acima (e dos demais requisitos para obtenção de autorização), como condição para continuar com a respectiva autorização. Assim, balancetes, informações financeiras auditadas por auditor independente e outros documentos de regularidade jurídica e fiscal passam a ter de ser enviados ano a ano – ou quando quer que a CCEE os solicite, sob pena de revogação da autorização.

A introdução de mecanismos mais detalhados de monitoramento anual como requisitos para o exercício da atividade de comercialização de energia elétrica vai ao encontro de outras propostas da CCEE que começam a ser discutidas no âmbito da Aneel. Atualmente, há duas consultas públicas com prazos abertos para a participação social e setorial (Consultas Públicas nº 10 e nº 11 de 2022) com vistas ao aprimoramento dos processos de monitoramento do mercado e das garantias financeiras de liquidação.

Com relação ao monitoramento de mercado, a proposta da CCEE é aproximar-se dos modelos de regulação prudencial adotados pelo sistema financeiro, sob ingerência do Banco Central do Brasil. Assim, a Câmara propôs à Aneel que os agentes lhe apresentem periodicamente informações sobre alavancagem, gerenciamento de risco e capital. Propôs também uma definição de situações consideradas pela CCEE como “anômalas” (rol não-taxativo que inclui operações envolvendo informações privilegiadas, aumento substancial de operações sem correspondente aumento de capital ou caixa, preços em desacordo com o mercado, entre outros exemplos apresentados). A verificação de tais condutas anômalas, de acordo com a
proposta, daria origem a um procedimento estruturado de fiscalização que poderia resultar na aplicação de penalidades (desde advertências e multas até o desligamento da Câmara).

A fim de operacionalizar tal monitoramento de mercado mais robusto, a CCEE propõe ainda mudanças na sistemática de registro de contratos. Atualmente, o registro de um contrato de compra e venda de energia na CCEE tem efeito de entrega do bem objeto da venda (a energia). Por conta disso, é comum que agentes registrem um contrato com montante igual a zero e ajustem seus valores conforme sejam pagos. Naturalmente, essa sistemática de registro mantém informações sobre os contratos ocultas da CCEE. A Câmara, então, propôs um mecanismo de “duplo-flag”, dividindo o atual registro dos contratos em duas etapas, de registro e de confirmação de entrega, para incentivar o registro antecipado de portfólios dos agentes.

Já com relação às garantias de liquidação, a CCEE propõe que os agentes em geral mantenham garantia financeira aportada equivalente ao risco potencial referente a duas liquidações do Mercado de Curto Prazo (MCP). Especificamente para as distribuidoras, a proposta é de que haja garantia equivalente à média das respectivas exposições negativas dos últimos doze meses. A isso se somaria um porcentual calculado com base na alavancagem do agente. Além disso, a Câmara propôs a criação de um fundo de liquidação para o MCP e revisão nas regras
de não efetivação de contratos por falta de aporte de garantias.

As mudanças introduzidas pela Resolução Normativa 1.014/2022, somadas àquelas em
discussão no âmbito das Consultas Públicas 10 e 11, de 2022, colocam a CCEE em uma posição de maior centralidade na atuação de monitoramento e regulação prudencial do mercado. Ao que indicam estas mudanças, aliadas à continuidade da abertura do mercado livre, a Câmara passará a contar com maior volume de informações e procedimentos mais estruturados para fiscalização dos agentes, abrindo uma nova fase na regulação do setor.

*David Waltenberg, Eduardo Evangelista e Pedro Schönberger são, respectivamente, sócio coordenador e sócios da área de energia da SiqueiraCastro e escrevem periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia, na qual o texto foi originalmente publicado.